Responsabilidade civil e imprensa: a caminho de um jornalismo mais responsável

Responsabilidade civil e imprensa: a caminho de um jornalismo mais responsável


24/08/2023 - 17:58:00

Nas palavras da escritora nigeriana Chimamanda Adichie, "o poder é a habilidade de não apenas contar a história de outra pessoa, mas de fazer que ela seja sua história definitiva"1. Com esta frase se inicia a série documental "O caso Escola Base", lançada este mês, revisitando o caso histórico, ocorrido na década de 90, em que diversos erros por parte da polícia e da imprensa arruinaram as vidas dos donos da Escola Base, na Aclimação, em São Paulo. Não obstante as severas acusações de pedofilia imputadas aos acusados e o consequente linchamento a que foram submetidos perante a opinião pública, descobriu-se, ao final das investigações, que eles eram inocentes.2

Revisitar esse caso histórico nos convida a revisitar o próprio papel da imprensa e os deveres a serem observados pelos jornalistas em sua atividade, cuja inobservância pode acarretar responsabilidade civil. Não se questiona, por óbvio, o importantíssimo papel desempenhado pela imprensa no Estado Democrático de Direito.3 No presente artigo, pretende-se examinar apenas a responsabilidade civil em decorrência dos excessos praticados no exercício da atividade jornalística, à luz dos parâmetros que vêm sendo delineados pela jurisprudência do Superior Tribunal de Justiça, em julgados proferidos nos últimos anos a respeito da matéria.

Segundo o STJ, há três standards de conduta a serem observados no exercício da atividade jornalística. Trata-se dos deveres de veracidade, pertinência e cuidado, cuja inobservância poderá ensejar responsabilidade civil, na hipótese de ofensa a direitos da personalidade de terceiros.4

Se, por um lado, seria temerário limitar o exercício legítimo da liberdade de expressão apenas à divulgação de informações tidas como irrefutáveis - o que poderia inibir injustificadamente a livre circulação de ideias, tão cara à democracia5 -, por outro lado, parece não só razoável como também necessário exigir, daquele que divulgar determinada informação, o dever de diligência na sua apuração (providência usualmente conhecida como fact-checking).

Nesse sentido, em precedente proferido este ano, envolvendo a divulgação de notícia que imputava ao ofendido a possível prática de nepotismo, o STJ entendeu que o dever de cuidado impõe a prévia checagem das informações que vierem a ser divulgadas a respeito de outrem:

RECURSO ESPECIAL. AÇÃO DE OBRIGAÇÃO DE FAZER C.C PEDIDO DE INDENIZAÇÃO POR DANOS MORAIS. (...) SINDICATO DOS SERVIDORES DO TRIBUNAL DE JUSTIÇA LOCAL QUE, APÓS FAZER REPRESENTAÇÃO PERANTE O CNJ, A RESPEITO DA OCORRÊNCIA DE POSSÍVEL NEPOTISMO, VEICULA A DENÚNCIA EM REVISTA. MUNUS PÚBLICO QUE DEVE SER EXERCIDO COM RESPONSABILIDADE. INOBSERVÂNCIA, NO CASO, DO DEVER DE APURAÇÃO MÍNIMA QUANTO À VEROSSIMILHANÇA DOS FATOS QUE LHE SÃO INFORMADOS, SOBRETUDO QUANDO SE TRATAM DE PROVIDÊNCIAS ABSOLUTAMENTE SIMPLES E QUE SE ENCONTRAM AO SEU ALCANCE, AGRAVADA PELA VEICULAÇÃO DE TAIS FATOS EM PERIÓDICO DE CONSIDERÁVEL CIRCULAÇÃO. RECURSO IMPROVIDO.

1. Sem descurar do indiscutível dever do Sindicato de levar ao conhecimento do CNJ qualquer fato supostamente ilícito de que tenha notícia, atrelado a esse munus, a ser exercido de modo responsável, está o dever de apuração mínima quanto à verossimilhança dos fatos que lhe são informados, sobretudo quando se tratam de providências absolutamente simples e que se encontram ao seu alcance, agravada pela veiculação de tais fatos em periódico de considerável circulação.

2. Mais do que a simples denúncia/requerimento feita ao CNJ para apurar um possível nepotismo - o que, em si, estaria dentro de suas atribuições -, o Sindicato fez publicar a correlata notícia em seu periódico de considerável circulação (nada menos do que dezoito mil exemplares), dando conta de que o Desembargador ali mencionado (cujo nome, embora omitido na matéria, seria, por evidente, internamente, de todos que trabalham no Tribunal de Justiça conhecido), como autoridade pública, permitia que a dita funcionária, embora remunerada pelo cargo comissionado, simplesmente não trabalhasse, apenas comparecendo de quinze em quinze dias. Tratou-se, como se verifica, de veiculação de notícia que não apenas atribuiu ao magistrado a incidência em nepotismo - de indiscutível gravidade -, mas também lhe imputou, claramente, crime contra a Administração Pública (de prevaricação, no mínimo).

3. Da publicação no periódico não constou, como seria de rigor - e aqui reside o dever inobservado pelo Sindicato de checar, minimamente, a verossimilhança de tais fatos, os quais estavam dentro, indiscutivelmente, do seu pleno alcance -, a relevante informação de que a indigitada funcionária faz parte do quadro de servidores efetivos do Tribunal de Justiça do Estado do Rio de Janeiro, o que, como é de sabença, dá-se por meio da aprovação em concurso público. Cuida-se, em tese, de funcionária capacitada para o desempenho do cargo, na medida em que a Lei de regência reserva um percentual mínimo para que funcionários do Quadro efetivo do Tribunal exerçam o cargo comissionado em questão, tendo assessorado, inclusive, por longo período, outros magistrados. Não se tratou, pois, de uma nomeação de pessoa estranha ao quadro do Tribunal de Justiça, com fins exclusivamente pessoais e espúrios, como a matéria pretendeu evidenciar.

3.1 Também não se veiculou qualquer informação na "matéria jornalística" em exame, de autoria e de responsabilidade do Sindicato, de que a aludida funcionária assessorava o Desembargador desde de 2007, quando ainda era juiz, em primeira instância. Ainda assim, fez constar, em termos peremptórios, que o Desembargador mantinha união estável com a irmã de sua funcionária - afirmação deveras temerária, e reproduzida na representação, a considerar os requisitos fáticos necessários à configuração dessa entidade familiar no Direito de Família -, a despeito de se tratar de fato, na ocasião, que ainda seria objeto de apuração pelo CNJ.

4. Embora a apuração devesse ficar a cargo do CNJ, a matéria jornalística em comento, de autoria e de responsabilidade do Sindicato, exacerbando, por completo, do compromisso de simplesmente informar a ocorrência da denúncia feita, fez constar que o referido Desembargador permitia que a sua funcionária - pela matéria, em termos peremptórios, sua cunhada - recebia dos cofres públicos o salário, sem trabalhar, comparecendo no gabinete de quinze a quinze dias. Veja-se, a esse propósito, que uma diligência mínima levada a efeito pelo Sindicato poderia checar a frequência e a assiduidade dessa funcionária, providência que, embora de simples consecução, não foi levada a efeito pelo Sindicato como seria de rigor, sobretudo quando optou por divulgar (e até de fazer constar da denúncia ao CNJ) detalhes que não guardam verossimilhança mínima.

6. A partir do quadro fático insculpido na origem - imutável na presente instância especial -, tem-se que o proceder levado a efeito pelo Sindicato desbordou, por completo, do exercício responsável de seu direito de representação e, principalmente, de publicação de fatos (objetos, na ocasião, ainda, de apuração) que, sem guardar verossimilhança mínima, mereceriam maiores cuidados por parte de quem resolve divulgá-los, avançando, indevidamente, na honra dos autores, passível de ressarcimento.

7. Recurso especial improvido.6

Ademais, no presente ano, o STJ também teve a oportunidade de julgar o caso dos "palhaços do Linha Direta", no qual o programa de televisão, além de narrar determinada denúncia de crimes sexuais feita pelo Ministério Público à época, exibiu uma dramatização do ocorrido por atores profissionais. Conquanto as investigações penais ainda estivessem em curso à época, o programa teria sugerido, de forma peremptória, que os acusados teriam efetivamente praticado os crimes que lhes eram imputados. Muito embora, posteriormente, os acusados tenham sido definitivamente absolvidos na esfera penal, sua imagem na sociedade já havia sido fatalmente maculada.7

Nesse caso, a controvérsia submetida ao STJ dizia respeito à quantificação da indenização pelos danos morais suportados pelos acusados, que tiveram sua imagem injustamente atrelada à prática de crimes sexuais em rede nacional. Ao julgar a controvérsia, a Corte parece ter levado em consideração, em especial, o dever de cuidado no exercício da liberdade de imprensa.

O voto vencedor, proferido pelo Min. João Otávio de Noronha, baseou-se na "inconsequência do programa da forma como foi feita"8. Em sentido semelhante, a Min. Maria Isabel Gallotti entendeu que, "quando faz um programa desse tipo antes do trânsito em julgado, antes de condenação definitiva, a emissora assume o risco de arcar com a responsabilidade civil, porque o resultado na vida dos envolvidos, daqueles que são encenados na pele de pastores e palhaços, sem que nunca tivessem sido nem pastores nem palhaços, e praticando atos execráveis, o prejuízo na vida dessas pessoas é incomensurável"9.

Em ambos os precedentes do STJ examinados, houve graves violações à honra dos ofendidos, em virtude da divulgação de informações que lhes imputavam a prática de atos ímprobos e criminosos. A Corte, em contrapartida, impôs compensações pecuniárias, na tentativa de reparar os danos extrapatrimoniais causados pelos excessos no exercício da liberdade de imprensa.

Cabe, contudo, uma advertência: a compensação pecuniária (pelos danos morais suportados) não deve exaurir os mecanismos de tutela do direito à honra do ofendido pela atividade jornalística. Além de medidas alternativas de reparação,10 como a retratação pública11 e o direito de resposta,12 discute-se se a iminência de violação aos direitos da personalidade pela imprensa poderia ensejar eventual tutela preventiva, de modo a obstar a sua materialização.

Segundo precedente paradigmático do Supremo Tribunal Federal, os direitos da personalidade não podem inibir, ex ante, a livre circulação de ideias, devendo eventual excesso no exercício da liberdade de expressão sujeitar-se às consequências previstas no ordenamento, a posteriori.13 Seguindo esse raciocínio, o STJ já entendeu impossível a condenação de determinado jornalista a cessar a divulgação de determinada notícia, sob o argumento da vedação à censura prévia.14 A questão, contudo, não é pacífica.

Se, de um lado, tal posição encontraria respaldo, em nossa cultura jurídica, no justificável repúdio à censura à atividade jornalística - duramente vivida na ditadura militar -, de outro lado, parece imprudente pretender hierarquizar os direitos fundamentais de forma abstrata, devendo o intérprete sopesar a liberdade de expressão com os demais direitos da personalidade envolvidos à luz das especificidades do caso concreto.15

Não se descarta, pois, a adoção, ainda que em casos excepcionais, de soluções mais enérgicas, que impeçam a circulação de informação inverídica que implique grave ofensa à honra de outrem. Nessa linha, sustenta-se, na doutrina, que "as situações jurídicas subjetivas não-patrimoniais merecem proteção especial no ordenamento nacional, seja através de prevenção, seja mediante reparação, a mais ampla possível, dos danos a elas causados"16.

A propósito, no próprio art. 12, caput, do Código Civil, faculta-se ao lesado a possibilidade de "exigir que cesse a ameaça, ou a lesão, a direito da personalidade, e reclamar perdas e danos (...)". A própria lei, portanto, estabelece diversos remédios, de natureza ressarcitória, repressiva e - por que não - inibitória.17

O caso da Escola Base e os demais precedentes julgados este ano pelo STJ, examinados ao longo deste artigo, nos convidam a refletir sobre os remédios existentes para tutelarem os direitos à honra e à imagem daqueles prejudicados pela divulgação de notícias inverídicas na imprensa. Em hipóteses severas como as aqui examinadas, limitar tal aparato remedial tão-somente à reparação pecuniária poderia amesquinhar os direitos da personalidade, cuja tutela, juntamente com a liberdade de expressão, é igualmente cara ao Estado Democrático de Direito.

Fonte: https://www.migalhas.com.br/coluna/migalhas-de-responsabilidade-civil/389873/responsabilidade-civil-e-imprensa-um-jornalismo-mais-responsavel


Imagem: miro.medium.com


 

Jaeger Advogados Associados

51 3331 5858

Av. Lageado, 1212 Sala 1501
Petrópolis - Porto Alegre / RS

Siga-nos nas Redes Sociais

Atendimento: 51 3331 5858

© 2024 - Jaeger Advogados Associados - Todos os direitos reservados

A PHP Error was encountered

Severity: Core Warning

Message: PHP Startup: Unable to load dynamic library '/usr/local/php/5.6/lib/php/extensions/no-debug-non-zts-20131226/newrelic.so' - /usr/local/php/5.6/lib/php/extensions/no-debug-non-zts-20131226/newrelic.so: cannot open shared object file: No such file or directory

Filename: Unknown

Line Number: 0

Backtrace: